Caro suicída que esta manhã disse adeus ao mundo atirando-se para a linha de comboio na estação de Edinburgh Park:
Espero que tenha tido uma boa razão para terminar a sua vida e, ao mesmo tempo, boicotar as viagens dos milhares de trabalhadores que por cá continuam a lidar com o quotidiano e todas as complexidades que daí advêm,
Sabe, por causa de si, perdi hoje duas horas do meu dia. Pode isto parecer-lhe uma afirmação egoísta e fútil, quando comparada com a tragédia que o levou à morte (um desgosto de amor? Rejeição da comunidade? Uma existência desajustada das exigências da vida moderna? Uma unha encravada?);
A sua opção levanta um número de questões que não me saem da cabeça – vamos por partes:
- Porquê Edinburgh Park? Esta é concerteza a estação menos interessante de todo o país, de arquitectura fria e materiais funcionais. Não tem cor, é metálica, foi plantada no seio de um parque empresarial deprimente, onde os edifícios e os logótipos são mais importantes do que a fauna humana. É que de repente vêm-me à cabeça opções muito melhores: várias estações de traça histórica e apelo romântico, com inúmeras referências literárias. Quantos personagens do Ian Ranking já passaram por Edinburgh Waverley, durante as aventuras policiais do Inspector Rebus? Quão bonito seria olhar para o recorte do castelo no horizonte, para as pontes vitorianas que demarcam os limites da estação, admirar cá de baixo o elegante monumento a Sir Walter Scott? Escolher estas imagens como as últimas imagens a levar desta vida? Seria infinitamente mais interessante, meu caro Watson (parafraseando outro autor da cidade).
- Porquê uma estação de comboios? Deixe-me que lhe diga: sobre esta questão a minha incompreensão não conhece limites. Perco a conta à literatura que ilustra com detalhe soluções de suicídio que passaram o teste da história: um bom saco de pedras atado aos pés antes de saltar ao rio, um voo em queda livre de um dos picos montanhosos da Escócia (uma escolha soberba na minha opinião – quão bonito deverá ser morrer com Glen Coe como pano de fundo?), o proverbial corte de pulsos no WC, comprimidos em excesso à lá Norma Jean. Até a asfixia por intoxicação me parece, ainda que grotesca, menos arrepiante do que a visão de um comboio a aproximar-se a velocidades estapafúrdias,
- Concedo-lhe, no entanto, um pequeno benefício da dúvida. Pode ser que, a juntar ao seu inconsolável desgosto, o meu caro suicida partilhe de um sentimento comum a todos os nós utilizadores da ferrovia – um ódio profundo à companhia Scotrail (um concessionário privado que cobra preços exorbitantes, tem um serviço de apoio ao cliente de merda e emprega mais inspectores de bilhetes do que trabalhadores para a manutenção das linhas férreas). Gostaria de acreditar, meu caro suicida, que também já tenha pensado que o que daria mesmo jeito era um comboio pontual, em vez daquelas brochuras caras a anunciar novos serviços de SMS a que os passageiros podem subscrever – pelo preço de um café, a companhia informa-nos sobre o atraso dos comboios (sim, é verdade, podemos pagar para saber quão atrasado está o comboio para o qual já comprámos um bilhete de preço inflacionado – não é genial?).
Presumo que o seu plano de partida deste mundo, meu caro suicida, teve como requinte último pôr de pantanas todo o sistema de partidas e chegadas da Scotrail para o dia de hoje, levando a empresa a cancelar metade dos seus comboios e obrigando a outra metade a desviar percursos, uma receita que garante um número de reclamações recorde à companhia (algo que, concerteza contribuirá para a decisão do parlamento quando chegar a hora de rever os termos da concessão dos caminhos de ferro).
Se foi esse o seu plano, meu caro suicida, deixe-me que lhe tire o chapéu. Que a sua alma descanse em paz.