Naquela noite de 22 de Dezembro de 1999, Clô e Ceissas trocaram a pressão do espírito natalício por uns gins tónicos no Speakeasy, um bar que ao bom sabor urbano e liberal tem fotos de homens nús no WC em vez da previsível imagem obesa do Pai Natal.
Entretidas pela ilusão de tanta felicidade, escapou-nos ao olhar o carteirista que entre um amendoim e outra golada de gin se apropriou da minha mala. Era de camurça côr castanha escura, segundo a declaração de furto da PSP, agora descoberta numa pasta de documentos antigos. Assim que pus a mão à carteira pela 163 vez nessa noite, um automatismo lisboeta desenvolvido pelas mulheres cujos bens atraem mais atenção do que o mel no verão, senti que no lugar da minha colecção de objectos essenciais (entre os quais recibos do multibanco de há 8 meses atrás), restava apenas a poeira do chão.
Desnorteada, levantei-me da cadeira, olhei em todas as direcções, e senti aquele calor de pânico de quem acabou de perder 50 contos em cheques. Sim, ao portador. Nisto, vejo uma figura na outra ponta do bar que a passos largos abre caminho até à nossa mesa. Confundida, olhei para os copos que tínhamos aviado. Se só tinha bebido dois gin tónicos, porque é que tinha agora o Claxon, Detective Privado da série de televisão, à minha frente?
- Roubaram-lhe a mala não foi? -, disse o actor.
O que eu queria ter dito era “Pôrra, mas como é que no meio de tanto azar eu consigo sacar um furo destes de ter o único detective privado da televisão portuguesa a resolver o meu caso? Claxon, dá cá um abraço pá. Deixas-te o chapéu misterioso em casa?”.
- Sim, acho que sim - foram, no entanto, as palavras me saíram da boca.
- Eu sabia, eu sabia! -, disse o Claxon de braços no ar. - Eu vi um tipo suspeito a rondar-lhe a mesa, era para vir ter consigo antes, mas entretanto o meu amigo distraíu-me à conversa, e quando olhei para si de novo já estava de pé.
- E viu quem ele era? - perguntei. Mas o que me apetecia ter dito era, “Pôrra Claxon, vi os episódios todos, e tu vacilas logo num momento real como este, em que a tua intervenção teria sido determinante. Merda para a televisão, essa fábrica de ilusões”.
- Eh pá vi! Vamos falar com os seguranças e chamar o gerente -, disse o actor, munido dos únicos recursos que restam a um gajo quando os holofotes da produção se desligam.
A minha amiga Ceissas, mulher beirã de palavras directas e pensamento rápido, agarra em mim e diz-me que nada disso, temos é que ir falar com o arrumador local urgentemente.
- Local? - perguntei. Mas isto agora dos subsídios do parqueamento à toxicodependência funciona por círculos eleitorais?
Dou por mim a correr atrás dela pelo cais da Rocha Conde d’Óbidos. Lá o encontramos, o arrumador, a fumar um cigarrito no intervalo de turno.
- Você sabe quem eu sou, não sabe? -, atira a Ceissas ao arrumador, que fica ainda mais baralhado do que eu. Ocorre-me que a minha amiga poderá ter relações ocultas com o submundo da exclusão social.
- Sabe sim, que eu venho muito aqui a este bar, e arrumo sempre o carro consigo! -, continuou a Ceissas, agitada que nem um carapau. - Roubaram a mala à minha amiga mesmo agora, acha que foi um dos seus colegas?
Colegas?! Senti então como nunca que já estava à demasiado tempo fora do país. A profissão do parqueamento tinha sido regulamentada. Ah Ceissas, as vantagens de ter cunhas, e a preversão dos promíscuos circuitos betos lisboetas, pensei eu.
- Tome lá o meu cartão, e telefone-me se souber de alguma coisa!
Este gesto da Ceissas pôs aquele homem numa posição priveligiada entre os colegas – era agora o único com contactos importantes na direcção de uma grande empresa informática.
No dia seguinte recebo uma chamada em casa por volta das 9 da manhã. Era de um gabinete de arquitectos à Rua das Janelas Verdes. Tinham encontrado a minha mala com documentos à porta do prédio. Uma voz simpática disse:
- Passe por aqui antes da hora do almoço porque à tarde não está cá ninguém.
Saí de casa mais leve, porque tinha ganho 10 dias de férias com aquele telefonema apenas. Eram os dez dias que não tinha que passar em repartições a pedir segundas vias. Comprei uma garrafa de Porto como gesto de agradecimento natalíco, e lá apareci ao gabinete das Janelas Verdes ao meio dia e meio.
- Já almoçou?, perguntou um dos arquitectos. - Então venha connosco para o almoço de natal da empresa!
E lá fui. Confio que não aconteceram furtos no speakeasy nos dias que se seguiram. A colheita que eu dei ao carteirista deve ter dado para umas quantas doses. Já o bom espírito cristão diz que o Natal é dar sem esperar nada em troca. Quanto ao Claxon... mais um mito da cultura popular que caíu por terra.